quinta-feira, fevereiro 09, 2006

( 16º Blogueiros Malditos )


Quando eu era eu-criança

E assim distraidamente espio alguns olhares. Às vezes me vejo tão impaciente...
Não tolero sorrisos sem compromisso, apertos de mão de passagem, se possível descubram sozinhos a porta da rua de mim, não tentem se mostrar ingênuos, interessados, prestativos, engajados, apaixonados, porque é inconstante e pueril, quando tudo o que se revela é irremediavelmente permeado de silêncios.
Se vamos falar um do outro sejamos francos: é possível nos descrevermos assim.
Lembro-me de quando eu era eu-criança...
O mundo era vasto, e havia mistérios, o outro era um grande enigma sem punições... As fugas no quintal de casa poderiam durar horas e também falando em horas, não havia tempo...
Tinha um salso chorão...Era uma árvore gigante que ficava nos fundos da casa da minha vó, pelo menos na minha lembrança era GIGANTE! Ela morava em uma ilha, distante de todas as casas, da cidade, de tudo...
Para chegar lá o único acesso era de carroça e depois uma longa caminhada por dentro de um bosque semicerrado de araucárias e plátanos e pequenos pântanos que cercavam o lugar.
Era realmente uma aventura chegar na casa de vovó. Eu ansiava que chegassem as férias para ficar com ela e o salso chorão! Lembro que tinha uma porteira branquinha que anunciava que era aquele o lugar, em frente um rio, depois do rio as montanhas e depois das montanhas o mistério...
Em cima sempre um céu azul e aquelas nuvens gordinhas e translúcidas...Levem em conta um relato de quem lembra e também cria esse passado... Muito bem...Farei diferente:
- Em cima eu quero que tenha sempre um céu bem azul e nuvens gordinhas, daquelas que se pode brincar de dar formas. Lá está minha vó cortando lenha, não, lá está a minha vó bebendo sua garrafa de vinho, produzido por ela mesma, de sua pequena plantação de vinhas. Ela me vê na porteira e imediatamente estende um copo de sangria, eu sempre achei graça desse nome: SANGRIA.
Parece algo que não se pode fazer, tem cheiro de algo proibido, ela sempre gostou de me dar sangria para beber, o preparo era delicado; vinho, água e açúcar, você meche e está pronta a sangria...


Ela me vê, estende o copo de sangria e também me vêem os 15 cachorros e os patos e as galinhas e as vacas e os porcos e as cabras e as caturritas e novamente ela... Com sua enorme trança branca e seu sorriso-meu...
No rosto existe toda a sua história, como pode ser tão lúcida? Como? De onde vem essa estranha e indecifrável vida? Nunca entendi como poderia ser tão confortável a solidão...Ela sabe que tudo o que sentimos naquele momento é transitório, mas é irremediável...
Posso dizer que faz tempo que nem eu nem você somos assim um com o outro?
... Era ela que corria até a porteira com todos os seus setenta e poucos anos para me receber, me acolhia, e eu a ela, não falávamos nada, eu entrava na casa com tanto cuidado, como se pudesse filmar com os olhos cada pedacinho daquele “dela-meu” lugar e ansiosa corria até os fundos para tentar abraçar o velho salso que parecia estar mais gigante.
O meu desafio era um dia alcançar o topo e ver além das montanhas, eu sabia que esse dia estava próximo, para ser franca eu poderia a qualquer momento subir até aquele topo...
Mas nunca subi. Nunca me atrevi. Às vezes também pensava na força das vontades, por exemplo, sobre o mundo das “explicações”... Se eu não quero acabar uma história como essa eu não preciso te dizer o porquê...
É redundante e pensando agora, novamente quando eu era eu-criança, era indizível simplesmente ser. Eu te contava sobre os mistérios, agora só gostaria de falar sobre aceitá-los.
É mais delicado do que parece se contar assim, diante de supostos “eus”, mas se efetivamente você me aceita como a você mesmo... irá entender então o que eu te direi agora:

4 comentários:

Anônimo disse...

a força da infância...
e a ingenuidade, que é bênção e maldição, recompensa e punição...

Vanessa Anacleto disse...

Alguns estão escrevendo sobre infância nessa edição do concurso e o seu texto trouxe a minha por instantes. Minhas lembranças do meu avô são semelhantes.

Boa sorte lá.

abraço.

Cristiano Gouveia disse...

As palavras não me servem de tradutoras nessa hora...Não há palavras, só uma sensação boa dentro do eu-ex-criança agora.

Lindo...

marcio castro disse...

bonito e sincero. bom.