sábado, janeiro 28, 2006


Benvinda

Enfim, Caminhou calmamente.
Turbilhão de imagens, cheiros,sons... e calmamente atravessou o cruzamento, braços impensados,pernas e pés agüentando sem importância o impacto com a terra. A cabeça como leme, apenas indicava a direção, no fundo os olhos, bem no fundo o pensar...velho.
Desviou suavemente das trombadas de estranhos, dos ruídos inaudíveis, do cemitério que divide a cidade, desviou também das gentes, todas elas,que se amontoam em busca não sei de quê.
Num passo lento afastou-se do ponto Z (barzinho mais famoso),da biblioteca na beira do cais, do mercado do peixe, ao lado da praça Xavier dos quase amores, afastou-se de outras praças também... desviou do farol da barra,das vagonetas,trilhos, onde pensava nas vezes da infância, vento salgado, sol multicolor rajando as tardes de quase primavera, das conchas quebradas,do barulho que faz o mar em ressaca no finalzinho da tarde ,do navio encalhado, de outros que passeavam lá longe,bem longe os olhos, da extensão interminável de areia escura, das dunas móveis, das mães d’água na beira da praia, queimando de vermelho-dor as peles, das pegadas indefiníveis na borda do mar...afastou-se também dos prédios; municipais,estaduais, federais, da construção portuguesa-espanhola-francesa, do mais caminhado canalete de Hortênsias, trecho que passava pelo teatro municipal e levava até a antiga viação férrea, que levava até o museu que levava até o inacabado teatro de arena... afastou-se gentilmente da casinha-mãe, no final da rua José de Alencar paralela com a Castro Alves que levava até a lagoa dos patos, onde flutuava solitária a ilha da pólvora, ponto estratégico de artilharia durante a guerra...que levava até o oceano atlântico, que levava até tantos outros ... afastou-se de outras casas também, aquela de telhados laranja e portas azuis...aquela com um portãozinho de ferro,que tem uma porta de entrada com uma janela bem no centro, aquela em que ...
Afastou-se...da festa do mar dos anos pares , na Marechal Floriano com Andradas, que sempre insistia em transformar o cais do porto em Disneylândia para turistas, o barco gastronômico quase sempre afundava, os fogos não ascendiam, as apresentações da orquestra a céu aberto,sempre era surpreendida com nossa tão previsível chuva-fina, regada com uma indescritível revoada de folhas de outono, se afastou dos monumentos desses heróis duvidosos, estátuas da padroeira da cidade, versões e versões em busca da mais perfeita Iemanjá, do kitsch nos adornos, do poético de contrastes, dos arautos na madrugada,das roupas simetricamente colocadas no varal, dos olhares efêmeros,dos afrescos nas fachadas,dos cantos na reserva do Taim, das torres imprevisíveis da igreja, do sótão do teatro...primeiro amor,dos bambuzais, das oliveiras, das vinhas- macieiras- mangueiras, figueiras centenárias , do céu que sempre há o que se ver, do rebojo, do minuano uivante, das milongas,caturritas,gurias,piás, tardes de chimarrão e histórias de boitatá,
dos cachorros simpáticos que corriam pelo calçadão da cidade em busca de aconchego, do coreto e seus sarais poéticos, que invadiam portas e janelas próximas, da doceria guarani...
Afastou-se desse lugar que se forma e se devora, dessa cidade quase ilha, desse porto de conformistas, desse desejo incontrolável de mundo, dessa forma cartesiana de fruir a si mesmo, ao outro, a cidade, o continente, a extensão de terra, o mar, as histórias, o vento, as figueiras, dessa maneira imortal de alimentar-se somente das próprias vontades, desse desejo pueril de querer se unir, quando a necessidade primeira é ser só.
Afastou-se pela avenida principal, aquela que leva até o arco escrito
“Boa viagem” e foi-se.

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